Pub

O cansaço parecia domar-me àquelas horas da manhã. As minhas pernas nunca pesaram tanto na minha vida, conseguia sentir os dedos inchados a embateram uns nos outros e o ardor no meu calcanhar. O pior era que parte da culpa era minha, visto que tinha decidido ir de saltos altos para uma noite de banco no hospital.
O meu rabo-de-cavalo estava desajeitado, tinha fios de cabelo soltos à volta do elástico que teimavam em cair para o meu rosto, que de tudo era o espelho do meu cansaço. Caminhei uns longos minutos a pé, numa rua escura onde o ruído dos meus saltos era a única coisa que me acompanhava, até denotar um certo movimento em redor de um estabelecimento. Fiquei momentaneamente feliz por, talvez, conseguir saciar a minha fome, todavia quando me aproximei daquela pequena amostra de população, um sentimento de penitencia encheu-me a alma.  Já de fora conseguia cheirar o tabaco que emanava daquilo que parecia ser uma pub, demorei longos minutos a ganhar coragem para entrar lá, só que a fome era muita e o tempo que restava para descansar as pernas podia não ser muito mais. Restou-me então seguir com o meu instinto primário e entrar no espaço.
Nesse mesmo instante vislumbrei uma maré de gente, só a confusão me fazia ainda mais cansada. Quase pronta a desistir, consegui esguiar-me pelo meio das pessoas e apoderar-me de uma cadeira perto do balcão. – Se faz favor… – Chamei a moça que estava do outro lado do balcão e que parecia partilhar, também ela, de algum cansaço. – Se faz favor! – Voltei a chamar pela rapariga num tom um pouco mais alto.

Cinco minutos. Tinham-se passado apenas cinco minutos e eu poderia jurar que tinha sentido as horas a passar por mim. Sentia-me apertada com tanta gente à minha volta, e nem o cheiro a suor do rapaz ao meu lado me demovia daquele lugar. A sua namorada estava colada ao balcão, e por pouco a sua cabeça não embateu no meu queixo. A forma como o seu amásio olhava para ela era simplesmente deliciosa e isso fez um sorriso brotar no meu rosto.
Perdi-me em pensamentos enquanto olhava para o casal e apenas uma voz masculina foi capaz de interrompê-los. Instantaneamente me voltei para o balcão, não sabia se tinha falado para mim, mas eu tinha que aproveitar o empregado se ter aproximado para, finalmente, satisfazer o meu pedido. – Boa noite. – Cortejei. – Preciso de muito café, do mais forte, e muito. E… - Será que este pub servia comida? Não me iria importar muito se fizesse figura de estúpida. – Algo para comer. Qualquer coisa dá.– A música estava demasiado alta mas o moreno que me estava a atender não parecia o mínimo incomodado com isso. Aos poucos fui reconhecendo a melodia que invadia o pub, era uma versão diferente de uma das mais belas músicas dos The Beatles, agora tocada por uma voz esganiçada e uns instrumentos eletrónicos que não sabia nomear. Que raio tinha aquela música de errado para a estragarem desta maneira? Mas mais impressionante que isso é que as pessoas pareciam estar a adorar e, ou o álcool é muito bom ou esta minha geração de jovens está oficialmente perdida.
             
Enquanto o meu pedido não chegava, visitei o meu telemóvel umas dezenas de vezes com medo que me tivesse chamado e eu não tivesse ouvido. Há uns tempos atrás andávamos com uns aparelhos, agora tínhamos uma aplicação no telemóvel que não facilitava em nada o transporte pelo hospital. Esta noite estava de banco nas urgências infantis, tive uma noite preenchida com febres e tosses e embora eu adore a profissão que escolhi, eu queria era operar. Ir para os blocos, salvar vidas de verdade. A figura larga do empregado aproximara-se novamente de mim. Só agora é que tinha reparado nas suas feições. A sua cara estava desenhada com traços marcados, começando pelo seu maxilar bastante bem delineado, passando pelos seus lábios carnudos um tanto imperfeitos e eram essas pequenas imperfeições que o faziam tão bonito e um tanto charmoso. Todavia, aquele seu ar altivo era um tanto destonado quando se encarava os seus olhos dóceis.

Ia para responder a Oliver, mas quando dei por mim já  não estava a meu lado. - Mas.. -  tentei falar mas não deu em nada. Não ia ficar ali parada a olhar para o balcão enquanto aquilo ainda estava muito cheio e muito menos ir-me embora, ainda por cima com o patrão no pub.
Continuei a servir várias imperiais que era o que mais saia a esta hora, felizmente dentro de trinta minutos, o pub fechava e toda a gente se ia embora, para podermos limpar e ir embora também.
Passados poucos muito, nota-se que o pub já estava a ficar vazio o que fazia com que não houvesse tantos pedidos, o que me fez começar a limpar a bancada e anotar o que precisava de pedir a Oliver para encomendar.

Entrei no bar cerca de um minuto depois de o meu turno começar, mas tanto me fazia entrar mais cedo ou mais tarde. Ninguém reparava e ninguém queria saber. Caminhei até à pequena sala onde colocávamos as nossas coisas e apenas deixei por lá o meu casaco, mantendo o meu telemóvel no bolso de trás das minhas calças. Em seguida eu tomei o meu lugar ao balcão e revirei os olhos quando o meu colega de trabalho disse algo sobre o "ar de poucos amigos" que transparecia no meu rosto na noite de hoje. Passei um pano sobre a zona do balcão onde alguém tinha virado um pouco de uma bebida qualquer e depois servi alguns clientes que se encontravam nas mesas, voltando em seguida para trás do balcão e indo servindo os clientes que se encontravam em frente do mesmo e não paravam de pedir isto ou aquilo. Seria uma longa noite, como todas o eram, e hoje o meu estado de humor não era mesmo o melhor. Com o que acontecia na minha vida, era impossível eu conseguir estar bem disposto.

Só de pensar que no próximo fim de semana tinha sido convocada para ir à casa até me dava arrepios e por isso quando a Kate me perguntou se queria ir sair, disse-lhe logo que sim. Juntamos o nosso pequeno grupinho e num instante encontramo-nos no pub - Vou buscar as bebidas. - disse-lhes levantando-me e caminhando calmamente até ao balcão - Hey. - cumprimentei o rapaz que estava do outro lado - São seis shots, se faz favor. - pedi estendendo-lhe o dinheiro.

Suspirei baixo quando ouvi mais um pedido e levantei o meu olhar para a rapariga que se encontrava agora junto ao balcão, mesmo à minha frente. - É para já. - eu disse num tom de voz meio rude, peguei depois nos copos, coloquei-os em cima do balcão num pequeno tabuleiro e enchi os mesmos com a bebida. Em seguida peguei no dinheiro que ela estendia para mim e peguei em algumas moedas de troco, pousando-os no balcão junto a ela.

Juntei as sobrancelhas ao ver o ar de poucos amigos com que o barman estava - Ok, obrigada pelo teu trabalho. - respondi irónica. Havia gente que parecia obrigada a trabalhar! O mínimo que podiam fazer era ser bem educados, enfim! - Espero que a tua noite melhor. - acrescentei piscando-lhe o olho antes de agarrar no tabuleiro e voltar para a nossa mesa.

Levantei uma sobrancelha assim que a ouvi e acabei por revirar os olhos e abanar a minha cabeça.
- Tens aí o que pediste, não vejo qual o problema. - será que ela não podia apenas ficar calada como todas as outras pessoas ao invés de me chatear? A minha paciência estava mesmo em níveis muito baixos naquele momento. - Adeus. - eu disse apenas e passei depois o pano sobre o local de onde ela tinha retirado o tabuleiro.

Virei-me para ele e mandei-lhe um beijo antes de prosseguir o meu caminho. Também tinha problemas é isso não fazia com que fosse mal educada no meu emprego! Enfim, não estava para o aturar quando só me queria divertir. Acabamos os shots e tentei passei a minha vez quando foi para ir buscar mais bebidas mas acabei por ter de lá voltar - Mal humorado! - gritei pelo loiro que estava do outro lado do balcão.

Continuei a servir alguns clientes e a limpar aquilo que fazia falta, só queria que as horas passassem o mais rapidamente possível para eu me poder ir embora dali. O meu olhar elevou-se novamente assim que ouvi a voz da rapariga de novo, não sei como mas reconheci a sua voz mesmo antes de ver o rosto dela e percebi logo que estava a falar para mim.
- Sim? - eu perguntei parando em frente dela e colocando as mãos em cima do balcão, enquanto esperava que ela fizesse um novo pedido e ignorando também o que ela me tinha chamado.

- Estás com um ar menos sofrido agora. - disse sorrindo quando ele se aproximou da zona onde eu estava parada à espera dele - Alguém te obrigou a vir trabalhar para aqui? - sempre tinha sido muito dada a falar com as outras pessoas mas ainda assim. Ao sabia muito bem porque é que estava a falar tanto com ele, ainda mais quando ele estava visivelmente de mau humor - Já agora sou a Maddy. - apresentei-me.

- Algumas pessoas têm de ganhar a vida de alguma forma. - eu disse com um encolher de ombros. - Quer o emprego seja do agrado ou não. - acrescentei, não é que eu odiasse o meu trabalho, não era assim tão mau, apenas não estava nos meus melhores dias. - Sou o Kale. - respondi assim que ela disse o seu nome, estava muito dada a conversas comigo pelo que me estava a parecer. - Então Maddy, o que vai ser desta vez? - eu questionei com o meu olhar focado no seu rosto.

Soltei uma gargalhada ao ouvi-lo; todo o dinheiro que a minha mãe me tinha deixado depois de morrer - a herança da família Blossom - estava fechada no banco até eu ter vinte e um anos. O meu pai tinha dinheiro mas ele e a nova mulher gastavam bastante e por isso é que mal tinha feito dezoito anos tinha arranjado um apartamento só para mim, mesmo que não pudesse ter uma verdadeira independência. E apesar de ser completamente contra os valores da minha madrasta, tinha começado a trabalhar e fazer voluntariado. Ainda assim a maioria das pessoas daquele círculo achava que eu devia voltar para a mansão, gastar o dinheiro em futilidades e procurar um marido. Obrigada mas não.
- Eu sei. - respondi-lhe - Mas a maioria tenta estar de bom humor quando o faz. - acrescentei sorrindo - Vodka cola e shots. Seis de cada. - pedi.

Encolhi os ombros, permanecendo com os meus olhos na sua figura.
- Claro, mas nem todos os dias nos correm bem nem em todos os dias conseguimos estar de bom humor. - era bom se isso fosse possível, mas não era mesmo em especial quando tínhamos uma dívida que nos podia lixar a vida toda. - Estás bastante disposta a dar-me ainda mais trabalho do que aquele que eu já tenho. - falei ao ouvir o seu grande pedido e deixando, uma vez mais, o meu mau humor vir ao de cima. Peguei nos copos colocando os mesmos em cima do balcão e fui enchendo os mesmos até todos eles ficarem cheios.

- Claro. - encolhi os ombros e acabei por voltar a rir - Desculpa lá fazer-te trabalhar, mal humorado. - disse rindo enquanto esperava que ele acabasse o meu pedido - Se quiseres podemos trocar. Eu vou para aí e fico com as tuas gorjetas. - ofereci piscando-lhe o olho - E tu podes ir tentar encontrar o teu bom humor.

Acabei por revirar os olhos por ela se estar a rir, porque eu não achava piada nenhuma. Talvez achasse num outro dia e acabasse por me rir com ela, mas hoje não.
- Para eu ficar ainda mais pobre? Não, obrigado. - neguei um pouco com a cabeça e empurrei ligeiramente o tabuleiro na sua direção, agora que o pedido estava completo. - O meu bom humor escondeu-se muito bem, creio que não o irei encontrar tão cedo. - retorqui com um sorriso forçado a aparecer nos cantos dos meus lábios.

- Vou deixar-te a trabalhar então. - respondi quando ouvi o seu comentário. Tirei uma nota da carteira e entreguei-lhe a mesma, sem me preocupar em ficar com o troco, deixando assim esse dinheiro para ele como gorjeta - Ao menos fiz-te sorrir. - comentei sorrindo também e tentei apoiar bem o tabuleiro que agora tinha mais peso - Até à próxima, Kale.

Peguei na nota e concordei com a cabeça. Ao menos ela tinha-me feito sorrir e digamos que apesar de não termos falado assim tanto, tinha deixado a minha noite um pouco menos aborrecida.
- Até à próxima. - disse de volta e continuei após isso a servir os clientes que iam chegando ao balcão para fazer os seus pedidos. As horas foram passando, eu andava de um lado para o outro, agora mais na zona das mesas enquanto ia limpando algumas e servindo outras, incluindo a mesa onde Maddy estava com algumas outras raparigas, que deduzi que seriam suas amigas. - Vão querer mais alguma coisa? - eu perguntei depois de parar junto à mesa onde se encontravam, e dirigindo-me mais especificamente para ela.

Os copos vazios foram-se acumulando na mesa e com o passar das horas o álcool foi-se fazendo sentir naquela mesa. Felizmente - ou infelizmente, consoante o ponto de vista - eu tinha uma boa tolerância por isso acabava por ser aquela que estava mais sóbria ali.
Levantei o olhar quando ouvi a voz do Kale e antes de conseguir responder fui interrompida pela Kate, uma Kate muito bebada.
- Sim. Queremos-te a ti. - respondeu ela piscando-lhe os olhos sugestivamente, levando a uma gargalhada geral.
- Desculpa. - pedi-lhe apesar de também estar a rir da situação - Não, estamos bem assim mas obrigada.

Virei o meu rosto na direção da rapariga que tinha falado e abanei a cabeça, rindo de leve do seu comentário. Já estava habituado a ouvir coisas daquelas, em especial depois de terem bebido mais do que era suposto.
- Ótimo. - eu respondi a Maddy depois de voltar a minha atenção novamente para ela. Em seguida afastei-me e dirigi-me para outra mesa, visto que me tinham chamado para fazerem um pedido.

Vi o Kale afastar-se e depois de olhar rapidamente para o meu telemóvel decidi que estava na altura de voltarmos todas para casa, ainda por cima quando eu tinha de trabalhar no dia a seguir. Era difícil ser a única mais ou menos sóbria num grupo de seis mas ainda assim lá consegui conduzir-nos a todas para o lado de fora do pub e felizmente não morávamos muito longe dali por isso depois de levar cada uma a casa foi a minha vez de ir para o meu apartamento.

As horas continuaram a passar enquanto eu fazia o meu trabalho, e não consegui evitar um suspiro de alívio quando olhei para o relógio e vi que estava quase na hora de fechar. Limpei as últimas mesas, assim como aquilo que faltava limpar e o bar rapidamente ficou vazio. Despedi-me depois dos meus colegas de trabalho, de forma rápida, e logo saí de dentro daquele bar. Uns minutos depois eu estava já a entrar na minha casa, visto que ficava ali perto e eu ia a pé para a mesma.

Depois de sair do meu turno da loja e apesar de estar exausta, ainda tinha ido fazer umas horas no voluntariado. Estava pronta para ir para a cama assim que meti um pé no apartamento mas os meus planos foram completamente cortados por uma nova chamada da minha madrasta; toda aquela insistência para lá ir no final da semana começa a deixar-me preocupada e escusado será dizer que além de cansada fiquei seriamente de mau humor.
Calcei novamente os meus sapatos, peguei nas chaves de casa, no telemóvel e na carteira e saí sem saber muito bem para onde até que entrei no primeiro sítio que vi: o pub do dia anterior. Como desta vez estava sozinha sentei-me num dos cantos do balcão onde seria mais fácil ser servida; era o meu dia de esquecer os problemas e beber.
- Hey. - chamei quem quer que estivesse atrás do balcão - Quero pedir.