Ruby's Diner

-Telefona-me se precisares. - Era sempre a última frase de despedida que dava à minha mãe. Às vezes ficava a pensar na possibilidade de um futuro com fim drástico; a minha mãe estendida no chão, completamente mal tratada e abusada, com o telemóvel preso na mão e metade do meu número digitado no ecrã. Eu até podia dizer-lhe que a amava, mas o sentimento estava mais incutido nas três palavras que lhe dizia todos os dias, do que no próprio "adeus, amo-te".
Apertei a alça da minha mala, fazendo o caminho até ao diner que já não ia há duas semanas. Na verdade, eu já não fazia nenhum caminho até nenhum lado, muito menos até ao meu emprego, o que me fez perdê-lo ao fim de três dias a dizer que estava doente. Não tenho culpa que costelas magoadas demorem tanto tempo a sarar, ainda hoje me doía com certos movimentos, respirar enquanto estava sentado ainda era mais doloroso.
-O que é que estás aqui a fazer? - Gloria, a única pessoa com quem podia contar, mandou o cigarro fora e veio ter comigo, de olhos esbugalhados. - Não devias estar a recuperar?
-Não devias estar a trabalhar?
-Estou na minha pausa. - Revirou os olhos. Suspirei, levando uma mão até ao lado do corpo que me doía.
-Fui despedido. - Respondi, desviando o olhar para o chão por momentos. - Achas que há alguma hipótese de me arranjarem um lugar na cozinha? O meu pai não pode perceber.
-E como é que lhe conseguiste esconder isto tudo durante duas semanas? - Mordi o lábio inferior, tentando combater a minha vergonha. Gloria era boa pessoa e não me ia julgar. Sim. Isso.
-Eu dormi numa cabana ao lado do quintal. Só a minha mãe é que vai lá, quando vai tratar do gado e da horta. - Engoli em seco. Sim, a minha mãe devia ser a única pessoa que ainda tinha animais e horta em plena cidade, ainda que estivéssemos mais recolhidos nos arredores. A expressão de Gloria caiu, os seus olhos arregalaram-se mas não ouviu nenhuma palavra em relação à minha confissão.
-Vai-te sentar, vou mandar a rapariga que está de serviço fazer-te um pequeno almoço. Entretanto eu falo com a patroa. - Mandou, enquanto entrava ao meu lado e me apontava para uma mesa vazia.
-Obrigado. - Mostrei-lhe um sorriso agradecido, sentando-me quando me deixou sozinho, e observei o sítio à minha volta, lembrando-me repentinamente da rapariga que me tinha ajudado em vez de Gloria, num dos piores dias que já tinha tido na vida. Não demorei muito tempo até a ver junto do balcão, a servir um cliente que parecia tão ensonado quanto eu. Ela era bonita, mais bonita do que Gloria e o resto das empregadas; pena que eu não possa (nem queira) ter um relacionamento, nem nada que se parecesse. Nunca arrastaria ninguém para a vida que levava em casa, isso apenas seria mais uma diversão para o meu pai, não lhe ia dar esse gosto.

- Paige? - e de repente, uma mão pousada no meu braço fez com todo o meu corpo estremecesse, levando-me a afastar de forma instantânea.- credo rapariga, porque é que te assustas sempre que te chamo? - e para não variar, era Gloria.
- Desculpa.- apressei-me a dizer, passando as mãos de forma nervosa pelo meu cabelo.- estava distraída.- tendo em conta a quantidade de vezes que eu lhe dizia aquela frase, não me admirava se um dia fosse despedida, mas não me podia dar ao luxo de lhe explicar a verdade. Nem queria.
- Tudo bem.- ela murmurou, parecendo aceitar minimamente a minha resposta.- preciso que faças um pequeno almoço para a mesa 24, pode ser umas torradas ou qualquer outra coisa que te apeteça cozinhar, é para um amigo.- assenti.- e tenta não te distrair desta vez, não queremos comida queimada.- e apesar do seu tom brincalhão, eu tinha percebido aquela indireta. Limitei-me a voltar a assentir, pousando o pano que apertava nas minhas mãos e apressei-me a preparar o que ela tinha pedido, pousando depois tudo em cima do tabuleiro. Guardei o meu bloco no bolso do avental e dirigi-me depois até à mesa, ficando ligeiramente estática quando vi de que cliente se tratava. Era o rapaz que eu tinha ajudado na noite em que ficara a fechar o Dinner. Nunca mais o tinha visto desde então, mas pelo menos agora já estava com melhor aspeto.
- Olá.- cumprimentei, ainda meio em choque por estar a vê-lo ali. Continuava sem saber o que pensar acerca daquela noite.- a Gloria pediu-me que fizesse isto para ti.- murmurei.- pousando o prato dos ovos mexidos e das torradas à sua frente, juntamente com uma chávena de café.- mas se quiseres que te faça outra coisa, é só pedires

Passei os dedos pela zona dolorida nas minhas costelas e fechei os olhos, relembrando-me do dia em que tinha ido ali parar, quase sem me conseguir mexer. Naquelas primeiras horas, eu pensei mesmo que fosse morrer, se não tivesse sido a outra rapariga para me ajudar, duvido que estivesse tão bem quanto estou agora; o mais provável de acontecer se ela não tivesse estado comigo... eu não sei, mas podia estar pior e ainda mais doente. Estava a pensar que queria voltar a agradecer-lhe, quando a sua voz surgiu ao meu lado.
Ela estava com o mesmo uniforme e os mesmos olhos assustados que eu me lembrava, mas se quisesse chamá-la pelo seu nome duvido que me lembrasse.
-Olá. - Retribuí, ainda meio atabalhoado (e algo embaraçado, mas isso eu sabia esconder). Desviei o olhar para a comida que ela trazia, sorrindo ao ver tanta no mesmo prato. - Eu gosto, podes deixar. Obrigado. - Agradeci, pegando de imediato no café. - Aliás... eu queria agradecer-te por tudo. Daquele dia... se é que te lembras... - Abanei a cabeça, não achando que aquele agradecimento fosse o melhor que conseguisse fazer. - Como é que posso agradecer-te?

Assim que o seu olá ecoou nos meus ouvidos, não consegui evitar que todo o meu corpo estremecesse de forma ligeira. Estava realmente distraída a observá-lo. Sem aquele capuz preto conseguia finalmente ver-lhe a face. Ainda assim, apesar do seu bom aspeto, continuava sem saber o que pensar em relação a ele e a tudo o que tinha acontecido. O que é que o tinha colocado naquele estado? Em que é que ele estava, ou não, metido? Eram demasiadas perguntas na minha cabeça, mas eu não tinha tempo para as respostas. Por isso mesmo, ia tentar parar de pensar tanto nisso. Já tinha problemas suficientes. E ainda por cima nem sequer o conhecia.
- Espero que esteja bom.- apressei-me a dizer, assim que percebi que já estava calada à demasiado tempo e passei sistematicamente as mãos pelo avental, preparando-me para ir continuar o meu trabalho quando o ouvi agradecer-me por causa daquela noite.- não tens de agradecer.- encolhi os ombros.- precisavas de ajuda e eu ajudei, não foi nada demais.- forcei um leve sorriso, juntando logo de seguida as sobrancelhas ao ouvir a sua pergunta. Como é que ele me podia agradecer? O que é que ele queria dizer com aquilo? - ahm...- hesitei, mordiscando a parte de dentro da minha bochecha.- acho que já fico contente se comeres isso tudo.- acabei por dizer, apontando com o queixo para o prato de comida que lhe tinha feito.

Eu podia ser uma pessoa distante, mas não era tão estranho quanto ela; só não conseguia perceber que ela estava calada porque não sabia o que dizer, ou porque estava assustada. Medo era uma palavra que eu conhecia e que sentia demasiadas vezes para ser saudável, era fácil reconhecê-lo noutra pessoa -- mas estava com medo de mim?
-Tu és nova aqui, não és? - Fiz uma careta. - Desculpa, de certeza que te fiz as mesmas perguntas no outro dia, mas não me lembro de muito. - Admiti, levando um bocado da comida à boca. Estava a fazê-la ficar a falar durante o seu trabalho, mas não me arrependia nem um pouco. - E podes lembrar-me o teu nome? - Pedi, tirando o capuz da cabeça.

Quando o capuz lhe caiu sobre os ombros, atrevi-me a deixar que o meu olhar pousasse sobre o seu rosto, ainda que durante breve segundos. A sua expressão já não era sofrida, os seus olhos já não estavam estão sombrios e, acima de tudo, toda a sua face estava muito mais saudável. Ou pelo menos parecia.
- Sim.- acabei por lhe responder, apressando-me logo de seguida a parar com toda aquela observação.- cheguei à duas semanas.- dei por mim a acrescentar, mordendo a ponta de língua de forma instintiva depois de o ter feito. Não podia, nem queria, dar mais informação. Ainda assim, deixei escapar uma pergunta.- tu nasceste aqui? - olhei em volta, deslizando os dedos pelo cabelo enquanto o fazia. Estava a sentir-me ligeiramente desconfortável. E como se isso não bastasse, sentia que qualquer palavra em falso me podia deixar numa situação terrível. Contudo, ele era a primeira pessoa que se estava a dignar a perguntar-me alguma coisa. O problema era...isso era bom? Até que ponto? Soltei um suspiro pesado, verificando se ninguém me chamava, e só ao perceber que não é que voltei a olhar para o rapaz, a tempo de o ouvir perguntar o meu nome.- Paige.- robotizei, controlando o impulso de lhe dizer o nome verdadeiro.- o teu é Carter, certo?

Ela confirmou as minhas suspeitas quando disse que tinha chegado apenas há duas semanas. - Sim, quer dizer, eu não nasci em Sydney, mas sou australiano, vim para cá com dois anos. - Encolhi os ombros, levando um bocado de comida à boca, suspirando de alívio por já ter comida no estômago. Quando voltei a observá-la, mordi o lábio inferior. Sabia bem ler as pessoas, já sabia que ela tinha medo, também já tinha percebido que ela não se sentia confortável. Não queria mandar embora para ela sentir que a estava a dispensar, porque até porque gostava de companhia, assim conseguia não pensar muito na minha vida e, para além disso, ela era bonita de se ver. - Sim, é Carter. - Forcei um meio sorriso e encolhi os ombros. - Acho que vais precisar de o saber, a Gloria vai tentar arranjar-me trabalho a fazer qualquer coisa.

Assim que o ouvi dizer que tinha vindo para Sydney com dois anos, limitei-me a assentir. Por momentos não consegui evitar tentar imaginá-lo em pequeno. Ele tinha um olhar terno, uma face com expressões muito...bonitas(?), mas isso não fazia com que eu deixasse de ter todas as minhas defesas a postos. Aliás, a única coisa em que eu conseguia mesmo pensar era no facto de invejar a possibilidade que algumas pessoas tinham de criar raízes em algum lugar, de terem a possibilidade de chamar de ''casa'' a uma cidade. Eu também gostava de o poder fazer, mas era impossível. No dia em que eu parasse de fugir, ele ia encontrar-me. Esforcei-me rapidamente por afastar os meus pensamentos daquele lugar sombrio e voltei a concentrar-me na sua conversa.
- Vais trabalhar aqui? - murmurei, acabando por procurar Gloria com o olhar, assim que Carter falou no seu nome.- tu e a Gloria estão juntos? - dei por mim a perguntar, arregalando ligeiramente os olhos logo de seguida.- desculpa.- apressei.- não tens de responder, eu nem sei porque é que te fiz esta pergunta.- mordisquei o lábio inferior de forma discreta.- se calhar é melhor voltar ao trabalho.- já estava mesmo a falar demais.

-Ainda não sei- - não consegui terminar a frase, já que ela perguntou logo de seguida se eu e Gloria estávamos juntos. Eu próprio arregalei os olhos, mas acabei por me rir, amaldiçoando-me por tê-lo feito tão genuinamente sabendo que me magoava na costela fraturada. - Não. - Respondi com um pequeno sorriso. - Não estamos juntos - abanei a cabeça - e não tens que pedir desculpa, estamos num país livre - fiz uma careta - mais ou menos. - Pisquei-lhe o olho, desviando o olhar para a comida que ela me trouxera.
Endireitei-me quando ela disse que era melhor voltar ao trabalho e assenti. - Está bem, eu chamo-te se precisar. - Voltei a amaldiçoar-me, mas desta vez por ser tão simpático. Eu nunca fora maldoso em situação alguma, mas também nunca era tão simpático para alguém de forma tão genuína, sem pensar. Gloria tinha sido diferente, estivera bêbedo e desesperado, com ela não... só estava desesperado.

Se eu já achava que aquela conversa estava a ir longe de mais, ainda mais segura fiquei assim que o vi piscar-me o olho. Endireitei-me de imediato, sentindo todo o meu corpo enrijecer e limitei-me a assentir a tudo o que ele disse, preparando-me para sair dali. Eu não podia dar confiança a ninguém, mas é que não podia mesmo deixar que isso acontecesse.
- Qualquer coisa é só dizeres.- murmurei apenas, deslizando as mãos pelo meu avental e apressei-me depois a virar costas, dirigindo-me logo para uma outra mesa, onde um casal me pediu que os servisse.

Assenti, vendo-a ir embora e levei uma mão à testa, abanando a cabeça; tinha mesmo que me acalmar em relação à rapariga, ela já estava a começar a ter medo de mim. Levei comida à boca, vendo Gloria sentar-se à minha frente, com um sorriso.
-Amanhã às seis da manhã tens que cá estar. Disse à patroa que és bom com a mão nas massas, ela está à espera de uns bolos bons. - Disse ela com um sorriso. Eu não era ótimo com bolos, não era bom em nenhum lado na cozinha, mas tinha aprendido a desenrascar-me com a minha mãe sempre doente ou de cama. - Está bem?
-Sim. - Assenti, desviando o olhar para a rapariga ruiva, apontando para ela. - O que é que sabes dela? Acho que a assustei, ela fez o teu papel no outro dia.
-Ela ajudou-te? - Perguntou de olhos arregalados. - Ela sabe?
-Não. - Abanei a cabeça. - Não lhe contei.
-Bem... ela é distraída, está sempre na lua e tem aqueles olhos assustados, mas não parece uma bitch. - Encolheu os ombros, fazendo-me rir ligeiramente. - Nada de romances no trabalho, é praticamente uma lei aqui. - Avisou-me quando já se estava a levantar. - Tenho que ir trabalhar, até amanhã.

Felizmente o dia terminou num instante. Ainda que odiasse a noite e tudo o que a ela estava associado, sabia bem chegar a casa depois de um dia inteiro de trabalho e descansar. Ainda que a minha noite de descanso durasse apenas duas horas ou três. Ainda não tinha aprendido a controlar os pesadelos, e sinceramente começava a duvidar de que alguma vez o fosse conseguir fazer, mas também já estava habituada. Contudo, a noite passou rápido, tão rápido que quando dei por mim já estava novamente a preparar-me para ir trabalhar. O facto de andarmos com falta de pessoal fazia com que toda a gente tivesse de trabalhar horas extra, mas eu não me importava. Pelo menos enquanto trabalhava conseguia manter a minha cabeça ocupada com outras coisas. Por isso mesmo, fiz o que sempre fazia e despachei-me assim que o despertador tocou, optando por um vestido e cabelo solto. Hoje não me apetecia perder tempo a arranjá-lo. Além do mais, era a minha vez de abrir o Diner, não me podia dar ao luxo de chegar atrasada.

Felizmente, quando voltei a casa o meu pai não estava em casa. Aliás, ele não apareceu durante o dia inteiro e, enquanto alguns filhos talvez ficassem preocupados, eu senti-me aliviado.
-Isso quer dizer que vais fazer tartes? - A minha mãe estava a rir-se e eu não pude deixar de sorrir.
-Sim, eu desenrasco-me. Não te preocupes que não enveneno ninguém. - Brinquei. Ela sorriu, afagando-me o cabelo como fazia desde que eu era pequeno.
-Não me preocupo, só tenho pena que tenhas perdido o outro emprego, sei que estar na cozinha não é a tua coisa preferida de fazer. - Comentou.
-Não faz mal, o que importa é que arranjar facilmente um e... talvez seja melhor. - Disse, apesar de não estar muito animado com isso. O diner era bom, mas para desabafar com Gloria, não para trabalhar como... boleiro? - Tenho que ir a correr. -Levantei-me, procurando pela minha carteira. - Até logo. - Beijei-lhe a testa, não lhe dando oportunidade de me fazer mais perguntas.
Saí a correr, já estava em cima da hora e não queria nada chegar atrasado.

Assim que cheguei ao Diner, percebi que talvez fosse trabalhar sozinha. Mesmo quando era eu a abri-lo, Gloria costumava chegar muito antes de eu lá estar. E apesar de a ideia me assustar um bocadinho, não deixei que isso me impedisse de abrir a porta e começar a tratar das coisas, ainda que a minha vontade fosse virar costas e voltar para casa. Enquanto ali estivesse, ia garantir o meu trabalho. Por isso mesmo, comecei por abrir a caixa e depois fui tratar de colocar as mesas no lugar enquanto os clientes não apareciam.

Vi as horas assim que entrei no diner, sorrindo para mim próprio ao perceber que tinha chegado a tempo. Ainda não estava ninguém, mas era suposto eu estar pronto a trabalhar, ou melhor, a fazer bolos. Revirei os olhos para mim próprio, mas parei de andar quando vi a Paige a preparar tudo.
-Bom dia. - Cumprimentei, entrando para dentro do balcão. Acho que a dona não se importava muito em me mostrar como as coisas funcionavam, por isso, ia precisar de ajuda. - Ahm, Paige... - aproximei-me lentamente, com uma careta; não a queria assustar, como já tinha feito antes. - Importas-me de dizer onde estão as coisas? Ainda não está ninguém da cozinha e eu já devia estar com tudo pronto para começar.

Depois de colocar todas mesas e cadeiras na esplanada, e de lhes dar um pequeno jeito, voltei para dentro do Diner, começando agora a limpar o balcão. Tinha tido sorte em arranjar este emprego, não eram precisos grandes esforços nem nada que fosse realmente complicado de se fazer. E, apesar de ter de lidar com pessoas, algo que me assustava bastante, não era nada que me deixasse em pânico. Na verdade, o que me deixou em pânico foi a voz que se fez ouvir de repente, mesmo ao meu lado, e que fez com que todo o meu corpo reagisse, levando-me a estremecer dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que virava a cara de forma brusca na direcção do som, com os olhos completamente arregalados. Era Carter.
- Mas o que é que tu estás aqui a fazer? - dei por mim a perguntar, com o pano completamente enclausurado pelas minhas mãos. Estava tão assustada que só passado alguns segundos é que a minha mente se acalmou e me lembrei da conversa que tínhamos tido ontem.- quer dizer...- tentei remediar, ao mesmo tempo que acalmava a minha respiração.- agora trabalhas aqui? - engoli em seco, tendo de fechar os olhos durante breves segundos enquanto respirava fundo.- desculpa.- disse algum tempo depois, voltando a olhar na sua direcção.- apanhaste-me de surpresa, não estava à espera que aparecesses de repente.- acabei por confessar. Eu sabia que quanto mais assustadiça me mostrasse, mais as pessoas iam desconfiar. Ainda assim, cada vez menos conseguia evitá-lo.

O meu coração disparou assim que ela me perguntou o que é que estava ali a fazer -- afinal não estava a ser tão bem sucedido quanto queria. Estava a tentar não assustá-la e ainda fazia pior do que as outras vezes, em que ela simplesmente se limitava a fugir. - D-desculpa. - Murmurei rapidamente. - Não queria assustar-te, tens razão, eu não devia ter entrado de repente. - Desculpei-me de imediato, enfiando as mãos nos bolsos das calças. - Estou só nervoso, não sei como é que isto vai correr. - Admiti.

Apesar de sentir que o meu coração me podia saltar do peito a qualquer momento, esforcei-me por regularizar a respiração e parecer mais calma, ainda que o meu corpo estivesse completamente em alerta. Não queria parecer ainda mais estranha do que já parecia, ainda por cima se agora íamos trabalhar juntos, pelos vistos.
- Não tem problema.- esforcei um leve sorriso, prendendo uma mecha de cabelo atrás da orelha, de forma distraída, só voltando a dar-lhe atenção quando o ouvi dizer que estava nervoso.- não te preocupes, é fácil trabalhar aqui.- encolhi os ombros.- daqui a dois dias já estás mais à vontade.- assegurei, apesar de não me sentir assim.- a cozinha é já aqui atrás.- continuei, apontando com o queixo para a porta que estava mesmo ao nosso lado.- eu vou dizer-te onde estão as coisas enquanto os clientes não chegam.- assenti para mim própria, mentalizando-me de que estava a chegar o momento em que ia ter de começar a socializar, pelo menos durante as horas de trabalho.

Ela não parecia muito agradada e começava a duvidar da minha capacidade de socialização. Não era o melhor, crescer naquela casa não me dava muito jeito para aprender a falar com pessoas, mas mesmo assim, não era a pior pessoa a fazê-lo.
Deixei-me sorrir com as suas palavras, sentindo-me ligeiramente mais aliviado ao perceber que me ia mostrar as coisas. - Obrigado. - Agradeci de imediato, observando em volta a cozinha onde tudo acontecia. - Não me apetecia nada perder o emprego no primeiro dia de trabalho. - Parei junto a um fogão. Não era uma cozinha muito grande, mas não era um espaço minúsculo a que estava à espera. - Queres ajuda em alguma coisa, enquanto eu não começo?

- Bem, como vês a cozinha não é assim muito grande.- disse, assim que lá entrámos.- neste armário tens todos os tachos e panelas que possas vir a precisar.- disse à medida que lhe ia mostrando.- e o resto das coisas estão nas gavetas, é só procurares.- encolhi os ombros.- basicamente eu e tu vamos estar em contacto através daquela janela.- engoli em seco, tentado habituar-me à ideia.- sempre que eu tiver um pedido passo-te o papel por ali e em troca dás-me a comida.- murmurei, acabando mesmo por soltar uma pequena gargalhada com as minhas próprias palavras.- eu não tenho mesmo jeito nenhum para isto.- disse, mais para mim do que propriamente para ele e voltei depois a levantar o meu olhar até ao seu.- espero que te tenha ajudado.- fiz uma pequena careta, ouvindo logo de seguida a sua pergunta.- eu estava agora a limpar as mesas.- encolhi os ombros.- se me quiseres ajudar a limpar a loiça, entretanto as pessoas começam a chegar.

-Está bem. - Encolhi os ombros ao fitar a cozinha mais uma vez; não era má se não estivesse lá muita gente. Fui assentindo ao que ela dizia, até fitar a janela onde ela apontava. Sorri, ouvindo-a rir, acho que isso nunca tinha acontecido até agora. - Tens mais jeito do que a gerente, que nem apareceu para me explicar. - Assegurei. - Mas eu acho que só vou fazer bolos. - Ri-me, quase me sentindo envergonhado, era um trabalho estúpido, preferia fazer o resto da comida, apesar da probabilidade era que ficasse tudo queimado. - Mesmo assim, vou falar-te dali para meteres na prateleira. - Sorri, apontando para a janela.
-Está bem, vou ajudar-te com a loiça. - Assenti, dando uma volta à procura dela. - E tentar não partir nada. - Acrescentei.

Juntei ligeiramente as sobrancelhas, ao perceber que afinal nada daquilo que eu tinha dito fazia sentido, visto que ele não ia ser o cozinheiro de serviço, e sinceramente não sei se aquela informação me deixou mais ou menos aliviada. De qualquer das formas, assenti, não perdendo demasiado tempo a pensar naquele assunto.
- Já estávamos a precisar de alguém que fosse bom com os doces.- divaguei.- o cozinheiro que aqui está só sabe mesmo fazer fritos.- encolhi os ombros, com a mesma careta de antes e comecei depois a dirigir-me para o escorredor da loiça, esticando-lhe um dos panos que estavam lá pousados.- a Gloria foi muito simpática em arranjar-te o trabalho.- comentei. Se íamos estar ali os dois, sozinhos a limpar pratos e copos, não ia deixar que fosse constrangedor ao ponto de ficarmos os dois em silencio. Não era preciso ficarmos melhores amigos, até porque nem amigos íamos ficar, mas ele era a primeira pessoa com quem falava. E não fazia mal conversar de vez em quando, pois não? - eu nunca falei muito com ela.- continuei, baixando o olhar para o prato que começava a limpar.- mas quando vim para aqui ela foi simpática.- murmurei, acrescentado uma pergunta logo de seguida.- é a primeira vez que trabalhas num sítio deste género?

-Não sou assim tão bom, só vou tentar não envenenar ninguém. - Brinquei, enfiando as mãos nos bolsos das calças, andando atrás dela, já que era ela quem conhecia melhor o espaço.
Agarrei no pano que me estendeu e peguei num prato para começar a limpá-lo. Até cheguei a pensar que íamos ficar em silêncio, já que ela nunca pareceu muito comunicativa, mas fiquei feliz por fazer conversa. - Sim, ela gosto de ajudar sem pedir nada em troca. - Sorri. - Ela é fixe. - Pousei o prato num canto, agarrando logo noutro. Fiz uma careta à sua pergunta seguinte, lembrando-me do meu emprego anterior. - É, os meus últimos trabalhos foram em bares, até já cheguei a trabalhar numa bomba de gasolina. Nunca andei a fazer bolos para ninguém.

Sinceramente, não sabia até que ponto era positivo estar a manter tanta conversa com ele, mas é verdade é que eu sabia que seria constrangedor demais se ficássemos os dois em silêncio. Ainda assim, continuava sem saber o que pensar da noite em que o vira pela primeira vez.
- E porque é que já não trabalhas mais em nenhum desses sítios? - dei por mim a perguntar, assim que raciocinei as suas palavras.- fartaste-te ou não correram bem? - conclui, acabando por me lembrar da razão pela qual eu já tinha trocado de emprego mais do que uma vez. Mais do que muitas vezes.

Estiquei-me até ao cabide e vesti um avental que lá estava - descuidado como era, ainda acabava com a camisola toda molhada. Aquele nunca seria um emprego de sonho, mas era um trabalho, e um trabalho significava dinheiro ao fim do mês. A minha mãe não se podia dar ao luxo de deixar de jantar só para ter o suficiente para aquele que se dizia meu pai.
Mordi o interior da bochecha antes de responder à sua pergunta, se lhe desse uma resposta sincera ela fugiria a sete pés. Os bares da zona não eram os sítios mais agradáveis.
-Fui despedido em todos, não gosto de violência. - Respondi, quase me rindo de mim próprio. Podia não gostar de violência, mas sempre respondia com a mesma.
Ouvi algo a partir-se e arregalei os olhos, olhando para as minhas mãos, de onde tinha escorregado um copo, estilhaçando-se pelo chão inteiro. - Merda.